A INSTRUÇÃO NORMATIVA MINC Nº 23/2025
- Bia Ramsthaler
- 25 de fev.
- 10 min de leitura

A cultura desempenha um papel essencial na construção da identidade nacional e gera um significativo impacto no desenvolvimento socioeconômico do país.
No Brasil, a política de incentivo fiscal à cultura, regulamentada pela Lei nº 8.313/91, popularmente conhecida como Lei Rouanet, tem sido um dos principais mecanismos de fomento ao setor.
Utilizada como elemento simbólico na disputa de discursos ideológicos imposta diante da polarização política contemporânea, foi ferozmente atacada por parte da sociedade civil que, desinformada, utilizou da existência deste mecanismo de incentivo fiscal para ataque a artistas e à arte brasileira. Pudemos também ver refletido este ataque no impacto gerado no setor frente a uma gestão desorganizada que pretendia a inviabilização democrática do uso deste dispositivo como forma de fomento ao setor cultural.
A partir do reestabelecimento do Ministério da Cultura em 1º de janeiro de 2023 (a pasta da cultura havia sido rebaixada à condição de Secretaria, estando subordinada a outros Ministérios), com a definição da nova Ministra da Cultura Margareth Menezes, o Ministério passou por um período de realinhamento e reorganização da pasta para que fossem sanados os graves desvios impostos ao campo da gestão cultural durante o período que antecedeu o atual governo. O resultado desta reorganização gera um importante reflexo: a Lei Rouanet teve captação histórica em 2024, superando os R$ 3 bilhões de reais, com aumento significativo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Este artigo pretende então propor uma análise e reflexão sobre os parâmetros instituídos pela nova Instrução Normativa publicada em 5 de fevereiro de 2025, pelo Ministério da Cultura.
O PAPEL DA INSTRUÇÃO NORMATIVA
O ato administrativo que detalha as regras e orienta os procedimentos para o funcionamento da Lei Federal de Incentivo à Cultura é a Instrução Normativa. Publicada anualmente, ela reflete os objetivos da pasta para o respectivo ano fiscal. Trata-se de um ato importante para a transparência e a padronização no modo como nos relacionamos com a lei.
A Instrução Normativa nº 23/2025 trouxe uma série de atualizações e diretrizes para aprimorar a gestão dos recursos e democratizar o acesso à cultura. Neste texto vamos analisar os principais aspectos deste documento, seus impactos sobre o setor cultural e os desafios que emergem a partir de sua implementação.
O Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), criado pela Lei Rouanet, estrutura-se com base em três mecanismos principais: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e o Mecenato (Incentivo Fiscal). Este último tem sido o mais utilizado e permite que empresas e pessoas físicas e jurídicas destinem parte do imposto devido para o financiamento de projetos culturais.
Estudos sobre políticas culturais apontam que o modelo de renúncia fiscal é eficaz na mobilização de recursos privados, mas também suscita desafios em termos de distribuição equitativa dos investimentos.
A Instrução Normativa nº 23/2025 propõe alguns avanços para que alcancemos soluções eficazes, impondo novos critérios e limites para os projetos incentivados.
A Instrução Normativa nº 23/2025 estabelece que os projetos devem atender a pelo menos uma das finalidades previstas na Lei Rouanet, sem apreciação subjetiva do valor artístico.
Faz-se importante repetir a informação “sem apreciação subjetiva do valor artístico“ trazendo este ponto inicial à pauta para que imediatamente possamos refletir sobre uma forma viciada de olhar para as leis de incentivo (muitas vezes adotada pela própria classe artística), que destaca que a Lei Rouanet não deveria atender a demandas deste ou daquele perfil de artista. É preciso lembrar que a Constituição Federal, lei fundamental de um país, é regra legal máxima que impera sobre todas as outras formas e dispositivos jurídicos e, conforme estabelece o Art. 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Este é um importante ponto que demonstra a complexidade imposta à gestão pública de cultura em um país de dimensões continentais, com diversas formas de expressão cultural (o que podemos dizer se tratar de CULTURAS – no plural) e com especificidades e diferenças gritantes sob a ótica da cultura, da economia, da realidade social e da distribuição de renda.
ANÁLISE DA INSTRUÇÃO NORMATIVA
Os projetos a serem inscritos na Lei Rouanet devem ser submetidos por pessoas físicas ou jurídicas no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (SALIC), com no mínimo 30 dias de antecedência do início da execução prevista.
Destaca-se a obrigatoriedade de comprovação de atuação cultural, por meio de portfólio de atividades, para proponentes com projetos com orçamento acima de R$ 200.000,00 (projetos com valores menores não precisam de comprovação). A partir da IN nº 23/2025, é preciso que esta comprovação também se dê através de códigos específicos de CNAE, detalhados no próprio sistema SALIC, de acordo com o segmento do projeto pretendido.
Como de praxe, o projeto aprovado na Lei Rouanet recebe autorização do Ministério da Cultura para que promova a captação de recursos junto à iniciativa privada. Como retorno objetivo ao apoio empreendido pela empresa ou pessoa física, o incentivador terá a possibilidade de utilizar do projeto como parte de sua estratégia de marketing e comunicação e de descontar até 100% do valor investido no projeto, no imposto de renda devido, obedecendo a alíquota de 4% para pessoa jurídica ou 6% para pessoa física. Isso significa que o patrocinador, sendo ele uma pessoa jurídica, poderá destinar apenas 4% do total de imposto de renda devido para um ou mais projetos culturais.
A IN nº 23/2025 determina que os recursos captados serão depositados exclusivamente em contas abertas pelo Ministério da Cultura no Banco do Brasil. Os valores captados têm natureza pública e não podem ser computados para fins de tributação empresarial. Além disso, impõe limites para valores captados e determina critérios para a prestação de contas.
Uma das principais inovações trazidas pela IN nº 23/2025 é o fato de que as medidas de acessibilidade agora devem ser contempladas como custos vinculados e não mais detalhadas em rubricas que compõem os custos individuais dos produtos culturais. Isso não desobriga a apresentação do plano de acessibilidade, orientando ainda que todos os projetos devem apresentar inclusive um Guia de Acessibilidade conforme modelo disponibilizado pelo Ministério da Cidadania e dos Direitos Humanos.
A acessibilidade é uma pauta chave, fruto de um esforço contínuo para que seja absorvida pelo produtor cultural proponente do projeto não apenas como uma obrigação legal de leis de incentivo e editais, mas como prática cotidiana de garantia de direitos democráticos.
A lei de incentivo também prevê, como de costume, ações de democratização e de ampliação de acesso, todas elas voltadas ao desenvolvimento de medidas que primam pela formação e pela garantia do acesso à experiência cultural por parte de jovens, idosos e demais públicos prioritários com a criação de ações formativas, contratação de jovens aprendizes e/ou estagiários, disponibilização de bolsas e/ou distribuição de ingressos a preços populares ou de forma gratuita.
Mantém-se ainda a necessidade de desenvolvimento de contrapartidas sociais para qualquer projeto que tenha previsão de cobrança de ingressos ou produtos dentro do contexto da proposta cultural apresentada. Estas contrapartidas devem contemplar 10% do público do projeto, com o mínimo de 20 e o máximo de 500 pessoas. Este público deve ser obrigatoriamente constituído por professores e alunos de escolas públicas. Projetos que contemplem ações formativas e programas educativos gratuitos estão desobrigados de apresentar uma ação de contrapartida social.
Outra alteração diz respeito à proposição de Planos Anuais e Plurianuais. Agora um mesmo proponente pode propor mais de um plano anual ou plurianual, desde que sejam para equipamentos culturais distintos, com orçamentos e equipes técnicas diferentes.
O valor por pessoa beneficiada (valor per capita) permanece em até R$ 300,00 (trezentos reais). Para este cálculo é preciso considerar apenas o público beneficiário estimado para o produto principal. O cálculo do valor per capita não se aplica aos projetos integralmente gratuitos ou projetos dos segmentos de concertos sinfônicos, construção de equipamentos culturais, desfiles festivos, educativos em geral, elaboração de projeto executivo e de arquitetura, manutenção de grupos e coletivos artístico-culturais e corpos artístico-culturais estáveis, museus e memória, óperas, patrimônio cultural, planos anuais e plurianuais, culturas tradicionais, populares e cultura afro-brasileira, desenvolvimento sustentável de territórios criativos, premiações, produção de obras audiovisuais e restauração de obras de arte.
Também o valor médio de ingresso inteiro ou da venda do produto cultural permanece estimado em R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais).
Já os limites de valores e a quantidade de projetos mudaram. Pessoas físicas podem propor até 2 projetos simultâneos totalizando o valor de R$ 500 mil. Os MEIs (microempreendedores individuais) podem apresentar até 4 projetos totalizando o valor de R$ 1,5 milhões. Optantes pelo Simples Nacional podem apresentar até 8 projetos totalizando o valor de R$ 10 milhões. Já as demais empresas jurídicas podem apresentar até 16 projetos, somando um orçamento de até R$ 15 milhões. Vale dizer que é compreendido como um mesmo proponente, a pessoa física e sua representação jurídica (incluindo instituições sem fins lucrativos).
Há também alteração de limite de valores para projetos de acordo com os segmentos.
Projetos normais (incluindo apresentações musicais, gravações de álbuns, teatro em prosa, dança e outros segmentos) que antes tinham teto de 1 milhão, agora passam para R$ 1,5 milhão.
O limite de R$ 6 milhões é aplicado para projetos que compreendam ações de incentivo à leitura, concertos sinfônicos, datas comemorativas nacionais com calendário específico, desfiles festivos, projetos educativos e espetáculos artísticos (circo, dança, teatro e espetáculos musicais) desde que com itinerância por pelo menos duas regiões do Brasil ou exterior. Também estão contemplados neste limite projetos de exposições de arte e cultura, projetos de inclusão da pessoa com deficiência, manutenção de grupos e coletivos artístico-culturais, pesquisas, premiações e plataformas independentes de vídeo sob demanda.
O limite de R$ 15 milhões é aplicado para projetos que compreendam ações como festival, bienal, festa ou feira, teatro musical e ópera.
Já os projetos que estão liberados de aplicação de teto por segmento compreendem ações de plano anual e plurianual; preservação, restauro, reforma e manutenção de patrimônio cultural material ou imaterial; construção, restauração e reforma de museus; preservação, digitalização e doação de acervos; conservação, construção e implantação de equipamentos culturais de reconhecido valor cultural e desenvolvimento sustentável de territórios criativos.
Também projetos de audiovisual tiveram alterações de limites, passando a ser de R$ 350 mil para curtas metragens, R$ 900 mil para médias metragens de até 45 minutos, R$ 1,2 milhão para médias metragens de até 70 minutos, R$ 600 mil para primeira edição de Festivais e Eventos Audiovisuais, R$ 80 mil por episódio para programas de TV, R$ 135 mil para programação semestral de rádio, R$ 30 mil por episódio de podcasts, R$ 80 mil para criação de infraestrutura de sítios de internet, R$ 220 mil para produção de conteúdo para sites, R$ 850 mil para aplicativos educativos culturais, R$ 60 mil por episódio de webserie, R$ 1,5 milhão para games ou jogos eletrônicos, R$ 400 mil para desenvolvimento de game ou jogo eletrônico, R$ 2 milhões para plataforma independente de vídeo sob demanda para difusão de conteúdo audiovisual nacional.
TERRITÓRIOS CRIATIVOS
O Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Criativos, conforme definido na Instrução Normativa nº 23/2025, se refere a um conjunto de ações voltadas à valorização e fortalecimento da economia criativa em regiões específicas, incentivando a articulação entre cultura, desenvolvimento econômico e sustentabilidade.
Os projetos submetidos nesse segmento devem cumprir requisitos que compreendem a delimitação do território e a identificação de suas dinâmicas culturais e econômicas; a promoção de atividades estruturantes e contínuas, garantindo a sustentabilidade do projeto após sua implementação; o apoio a ecossistemas criativos locais, incluindo a formação de redes e governança colaborativa; a criação de infraestrutura para a economia criativa, como espaços culturais e núcleos de pesquisa e o desenvolvimento de parcerias entre setores públicos e privados, além do envolvimento de comunidades locais.
O objetivo dessa iniciativa é garantir que as políticas culturais contribuam para a sustentabilidade dos territórios, gerando impactos sociais e econômicos a longo prazo.
O IMPACTO DA IN Nº 23/2025 NA GESTÃO DO PROJETO E NA CAPTAÇÃO DE RECURSOS
Sobre o impacto na captação de recursos é preciso destacar que o limite para remuneração do profissional captador foi mantido em 10% com o teto máximo de R$ 150 mil reais. Para planos plurianuais e projetos de desenvolvimento sustentável de territórios criativos, o limite será considerado anualmente, conforme a duração do projeto.
As limitações para custos administrativos permanecem em 15% e os custos de divulgação que agora contemplam também os custos relativos à acessibilidade se mantém em 20%.
O prazo de captação de recursos do projeto é de no máximo 36 meses, contabilizando as prorrogações automáticas.
Quando da execução proporcional do projeto em razão de captação parcial, é preciso destacar a necessidade de execução integral da contrapartida social.
Quando houver saldo remanescente, será possível transferi-lo para outro projeto ativo em até 20 dias após o término da execução.
Também haverá maior rigor quanto à aplicação de logos do governo e do Ministério da Cultura nas peças de divulgação.
CONCLUSÃO
Conforme destaca o Ministério da Cultura, a IN nº 23/2025 foi elaborada com base em ampla consulta pública e diálogo com agentes culturais, especialistas e representantes do setor e sem dúvida representa um passo importante para a democratização do acesso à cultura e a transparência na aplicação dos recursos.
A manutenção destas consultas e de um diálogo aberto com agentes culturais – sejam eles artistas, produtores ou gestores - além da ampliação de ações de comunicação que prevejam o acesso amplo à informação como forma de combate às notícias falsas, são passos importantes para a busca pelo equilíbrio e pela democratização do acesso a recursos públicos.
Também se faz importante a constância das trocas e estudos que visem a ampliação e melhoria das pautas que integram programas voltados à descentralização e ao acesso às minorias, inclusive considerando a vulnerabilidade social de sujeitos historicamente excluídos da prática cultural.
Por fim, destaca-se a necessidade cotidiana de ampliação de ações de sensibilização que promovam a prática da acessibilidade não apenas como dispositivo legal, mas como linguagem diante do fazer e do pensar, integrando um olhar cuidadoso para os equipamentos públicos.
O ideal seria que a responsabilidade da acessibilidade física não fosse obrigação do projeto cultural, mas que pudéssemos contar com espaços físicos acessíveis independente da implantação de um ou outro projeto. Ao produtor cultural ficaria então a responsabilidade frente a experiência artística e sua adequação para uma linguagem acessível.
A cultura é um elemento vivo, plural e diverso que se reflete em um desafio constante e real para o gestor público. Atender a todos, compreendendo e considerando as diferenças, integrando grupos historicamente invisibilizados em um exercício cotidiano de inclusão com o enorme cuidado de, ao incluir, não excluir.
A ampliação do campo de visão do gestor público frente à cultura e às políticas públicas para o setor tem sido uma pauta urgente desde a gestão do então Ministro de Gilberto Gil (2003), com intervalo explícito durante o governo Bolsonaro (2019-2022) e claramente recuperada e impressa nas decisões que configuram a atual gestão da Ministra Margareth Menezes.
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